A exposição Paisagens Mestiças de Maristela Salvatori, atividade paralela ao CSO’2013, ocorre no âmbito de um ciclo de intercâmbio entre artistas portugueses e brasileiros na Capela da Faculdade de Belas-Artes da Universidades de Lisboa, Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal. Apoio: Ministério da Cultura do Governo Federal do Brasil.
As
paisagens mestiças de Maristela Salvatori
A maioria das
crianças tem a percepção de que tudo a sua volta é grande, de que as distâncias
são longas e de que os edifícios são colossais. Elas agem como os adultos:
mensuram o mundo a partir de seu tamanho. Imaginemos essas mesmas crianças anos
depois, já crescidas: provavelmente se surpreenderão ao constatar que certos caminhos da infância, tão vastos na lembrança, são, na
verdade, curtos, e que o interminável corredor da casa dos avós não tinha mais
que uns poucos metros... Um dos aspectos que mais instigava Maristela
Salvatori, quando menina, era justamente a dimensão de algumas construções
arquitetônicas e o seu diálogo com a paisagem natural, que lhe provocava
curioso maravilhamento. Dependendo do ponto de vista que lançava a esses panoramas,
sentia como se pudesse tocar no horizonte, ou como se fosse engolfada pelos
prédios. O fascínio pelo espaço e, sobretudo, pela relação que estabelecemos
com ele, é elemento central da poética da artista brasileira, que há mais de
três décadas se dedica ao estudo e ao ofício da gravura em metal.
Acompanhando a
trajetória de Maristela, é interessante observar como, no início, a figura
humana ainda persistia em suas composições, diminuta e deslocada. Com o tempo,
foi totalmente suprimida, permanecendo tão somente o espaço: grave, silencioso,
desertado. Hangares, arsenais, armazéns portuários e estações de trem são
alguns dos motivos mais recorrentes em seu trabalho, mas sempre despovoados.
Alguns comentaristas já apontaram a proximidade dessas imagens com a atmosfera
melancólica da Paris registrada por Eugène Atget (1857–1927), onde a presença
humana se dá, quando muito, fantasmagoricamente. Assim como Atget, Maristela
passa ao largo das grandes vistas e dos monumentos característicos e, assim
como ele, apresenta-nos fragmentos muito íntimos de seu percurso pelas cidades.
Entre suas gravuras recentes, uma representa a vista que tinha de seu
apartamento em Québec, Canadá, onde há pouco tempo realizou Estágio
Pós-Doutoral. E o que temos diante dos olhos, sumariamente: casarios
justapostos com janelas, marcados por íngremes telhados e algumas chaminés. Em
outra imagem, ruínas de um templo católico na Guatemala, com as cúpulas
vazadas, sugerindo a dialética entre cultura e natureza. E, em uma terceira,
abóbadas e arcadas do Château Frontenac, em Québec. Nenhum vestígio natural ou
dinâmico, nenhuma presença vegetal ou animal. Desprovidas da presença humana,
essas construções são, todavia, resultado da criação humana. Nelas, portanto,
reside o humano, estático e silente. Nesses cenários fixos, de luz estudada,
composição rigorosa e foco extenso, como não considerar que algo misterioso
está prestes a acontecer? Como não sentir presenças latentes na ausência
inconteste?
Paris, Veneza, Québec,
Oaxaca, Lisboa, São Miguel das Missões, Porto Alegre: difícil reconhecer essas
cidades nas imagens apresentadas... O que Maristela nos traz são paisagens
subjetivas, relacionadas a suas vivências ou que, de alguma maneira, evocam
suas memórias. Suas gravuras e monotipias partem de fotografias, realizadas
pela própria artista ou extraídas de jornais e revistas. E a fotografia, como
nos lembra Luiz Carlos Felizardo, é resultado de um todo indiscriminado, a
partir do qual o autor estabelece suas seleções, dele subtraindo suas imagens,
gerando significados às vezes novos, ainda inexistentes, para os fragmentos
resultantes. Operação contrária à do pintor, à do gravador e à do desenhista,
que tradicionalmente criam diante de uma superfície descarnada. Tomando o
exposto, é interessante examinar como Maristela dialoga com as duas tradições.
Para ela, a
fotografia é tomada como referência. Nesse sentido, é também matricial. Quando
necessário, valendo-se de recursos digitais, a artista elimina o que não lhe
interessa, a exemplo da vegetação e da presença humana. Estabelece, deste modo,
novos cortes, mas respeita o enquadramento que remete ao formato mais
tradicional e acessível da fotografia, o 35 mm. Também reprocessa as cores,
vertendo-as para uma paleta de cinzas e pretos. Antes de ser gravada, a imagem
passa por novos estudos e edição: alguns elementos são simplificados ou
excluídos, enquanto outros, considerados mais relevantes, são ampliados.
Maristela dificilmente conserva a proporção dos edifícios e espaços
fotografados, destacando-os pela projeção perspectiva. Arcos, telhados,
escadas, paredes, pilares e componentes estruturais e arquitetônicos ganham
amplitude, que via de regra os desnaturaliza, estabelecendo particulares
convenções de representação e propondo ao espectador novos hábitos perceptivos.
Nesse rol, uma
pergunta lícita seria: por que gravura?
E uma conjectura igualmente lícita, a partir do postulado no parágrafo
anterior, é que a gravura permite uma depuração maior, bem como uma ampliação
das potências significantes do que e
do como é representado, graças aos
apagamentos realizados, às proporções dilatadas e à luz vigorosa, que densifica
as áreas de sombra e fomenta a tensão acerca do que, na superfície, coloca-se
como tema das obras. Por outro lado, ao recorrer aos materiais e aos
procedimentos da gravura, mesmo que busque representar formas angulosas com uma
geometria projetiva aparentemente acurada, a hesitação das linhas e o
desencontro entre as mesmas prevalecem, franqueando o gestual. Esse caráter é
evidente nos polípticos em monotipia, precisos na configuração de grade e
imprecisos nos encaixes entre as partes. Justapostas, as monotipias estabelecem
um conflito entre o apelo figurativo do conjunto e a essência abstrata de cada
um dos segmentos. Elas escancaram a edição e o aspecto de invenção do trabalho.
Mais recentemente, escancaram a própria matriz fotográfica, quando a artista
substitui uma das lâminas por uma fotografia em preto e branco, também ela
excerto de uma imagem maior, cujas linhas e texturas se confundem com as
impressões. A grade estruturante dessas monotipias, portanto, notabiliza o
fracionamento, a montagem, o artifício, a natureza indicial da poética de
Maristela.
Os cruzamentos entre
as tradições da fotografia e da gravura em metal ganham nova corporeidade nas
fotogravuras, que a artista passou a desenvolver no Canadá. Conhecida como
“gravura não tóxica”, essa técnica lhe permite explorar o “grão da imagem”,
caro ao vocabulário e ao imaginário da fotografia, notadamente da fotografia
química. O resultado revela-se em composições de textura suave e luz
sussurrante, que apontam outros desdobramentos, distintos dos verificados nas
imagens calcografadas pela água forte e pela água tinta. Se, nessas últimas, o
traço sobre a placa de cobre e o uso de agentes corrosivos parecem querer
assegurar a permanência do que é representado, nas gravuras em polímero a
transitoriedade é reforçada pela atmosfera etérea dos tons em cinza e prata.
Mesclando procedimentos
tradicionais e tecnologias digitais, sobrepondo ou justapondo recursos,
Maristela Salvatori coloca-se como uma artista-pesquisadora de fato. As
paisagens mestiças que nos apresenta sugerem não apenas as suas paisagens
internas, mas as etapas de instauração do trabalho artístico, revelando a sua
compreensão das relações que amarram os processos, bem como a constância e a
maturidade de sua reflexão.
Paula Ramos
Crítica de arte,
professora-pesquisadora do Instituto de Artes da UFRGS.
Porto Alegre, fevereiro
de 2013.
http://www.fba.ul.pt/paisagens-mesticas-exposicao-de-maristela-salvatori/
Abertura com prof. Luís Jorge Gonçalves, diretor da FBAUL. Foto: Flavya Mutran
http://www.fba.ul.pt/paisagens-mesticas-exposicao-de-maristela-salvatori/
com João Paulo Queiroz, coordenador do CSO’2013
em primeiro plano Nuno Sacramento
professor Luís Jorge Gonçalves, diretor da FBAUL
com Alfredo
Nicolaiewsky , diretor do IA/UFRGS, e Paulo Gomes
com Josep Montoya, Angela Grando e Almerinda da Silva Lopes
com Maria do Carmo
Veneroso e Alexandra Ramirez
com Joanna Latka,
Paula Almozara, professor Luís Jorge Gonçalves, diretor da FBAUL e Andrea Brandão
A Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa situa-se no Chiado, ocupando parte do que foi o antigo Convento de São Francisco, de 1217. Recentemente restaurada, sua Capela, de grande beleza e luz, apresenta um altar com detalhes em granito e azulejos de períodos diversos. Foto: Flavya Mutran.
Foto: Flavya Mutran.